Um curioso aparelho pontificava lá em casa: a telefonia.
A telefonia, a que os puristas chamavam TSF como mesmo zelo e convicção com que hoje falamos de wireless para nos referirmos a todas as tecnologias em vias de desmaterialização, era uma caixa em forma de paralelepípedo, já não sei se de madeira ou a imitar madeira, por onde ouvíamos a rádio. Se, em termos materiais, não passava de um caixote contendo válvulas, bobinas, capacitor, resistor e altifalante montados sobre um chassi de chapa, engenhocas que só se descortinavam a custo se espreitássemos, como era meu hábito de garoto, através dos orifícios da parte traseira, pouco ligávamos àqueles “miúdos”, vísceras que só os electricistas entendiam e sabiam reparar. Para nós, família e vizinhança, que éramos gente simples, aquilo tinha como que vida, um certo tipo de animação com que interagíamos através do rosto onde se destacava uma folha por onde saía o som, de palhinha entrelaçada protegida por umas barras verticais de plástico ou madeira, duas réguas graduadas e um ponteiro, rectro-iluminados, para orientar a sintonia das ondas médias ou curtas e dois botões laterais, o da esquerda para regular a intensidade do som e o da direita para sintonizar. Como um cão ou um gato, fazia parte da família. E tinha nome, nome estrangeiro que em Portugal um nome estrangeiro ou simplesmente estrangeirado sempre conferiu dignidade às coisas e às pessoas: Philips. Tinha uma tal centralidade que estava sempre no balcão da cozinha, por cima da gavetas do pão e dos talheres, agarrada pela trela a uma tomada da parede junto à mesa onde habitualmente nos reuníamos para comer, conversar e ... ouvir a telefonia.
Quanto às telefonias não terem fios tem que se lhe diga: tinham e não tinham. Ao contrário do telefone e do telégrafo, que enviavam sinais electromagnéticos através de fios, a radiodifusão ou broadcasting transmitia electromagneticamente através do espaço, difundindo de um para muitos, da estação emissora para os múltiplos aparelhos receptores na posse dos rádio-ouvintes, as telefonias. Estas alimentavam-se de electricidade e, por essa razão, precisavam de um cabo para se ligarem à corrente eléctrica do edifício. Mais tarde, já tinha deixado para trás a minha infância, começaram a ser comercializadas telefonias portáteis a pilhas. Já nessa altura a voragem tecnológica ditava a obsolescência dos equipamentos mas não à velocidade com que hoje em dia encomendamos um equipamento pela eBay que, quando chega de avião, já está obsoleto. Há um significado nesta diferença: dantes a telefonia servia para ouvir, hoje serve para ter e mostrar. Assim se cumpre a profecia de que a mensagem é o medium. Nessa altura de profanação mediática, os meus pais desfizeram-se da velha Philips, que era um altar familiar, e adquiriram um trambolho plastificado com pega que podia ser levado para a praia ou para os picnics do Monsanto ou da mata de Benfica.
Até agora, apenas falámos do receptor, o tal objecto de estimação que pontificava lá em casa. Mas este não funcionava sem estação emissora e, por isso, cuidemos de ver qual era a situação na altura.
Entre o fim da I Guerra Mundial e o início dos anos 30, decorrera um período inaugural de radio-amadorismo. A partir daí, as estações de rádio em onda média já existentes começaram a agregar-se e a dar origem às estações comerciais e foram criadas estações profissionais novas. As estações de rádio localizadas na área de Lisboa e que acompanharam a minha meninice haviam sido fundadas na década anterior à do meu nascimento: o Rádio Clube Português, a Emissora Nacional e a Renascença.
O Rádio Clube Português, com estúdios e antena emissora na linha de Cascais, pertencia a Jorge Botelho Moniz, um oficial republicano ultra-conservador que apoiou sucessivamente o golpe militar de Sidónio Pais, o neo-sidonismo, a ditadura militar e o regime salazarista. Comandou a repressão da revolta da Madeira, apoiou os nacionalistas de Franco na guerra civil espanhola através da constituição e envio do corpo militar de voluntários portugueses, os Viriatos, e criou a Legião Portuguesa. A estação, fundada em 1931, nascera claramente com o intuito de fazer a propaganda do regime e tornou-se uma voz activa no conflito aqui ao lado, emitindo em castelhano, pela voz de Marisabel, para os nacionalistas espanhóis. Pioneira na rádio, também foi pioneira na televisão ao associar-se ao Estado, como segunda maior accionista, à fundação em 1955 da Rádio Televisão Portuguesa, a primeira estação portuguesa de televisão. Ironicamente, foi através dos seus microfones, na madrugada do 25 de Abril de 1974, que o Movimento das Forças Armadas transmitiu ao País o seu primeiro comunicado pondo em marcha a derrocada do regime que a estação sempre apoiara.
Sob o impulso do eng. Duarte Pacheco são realizadas as primeiras emissões experimentais, em 1932 em onda média e em 1934 em onda curta, da Emissora Nacional de Radiodifusão, inaugurada oficialmente em 1935, sob a tutela da Direcção Geral dos CTT, e tornada organismo autónomo em 1940.
A revista “Renascença - Ilustração Católica” faz apelo desde 1933 à criação de uma “Emissora Católica Portuguesa”. A Rádio Renascença realiza as edições experimentais de onda média e onda curta, respectivamente em 1936 e 1937 e, no ano seguinte, é finalmente inaugurada.
Na II Guerra Mundial, o Governo mandou encerrar todas as estações emissoras particulares, autorizando a título especial o funcionamento de algumas estações profissionais entre as quais o Rádio Clube e a Renascença. Esta proibição só foi levantada em 1947.
Da janela da sala de jantar via perfilarem-se ao fundo várias antenas. Em frente, no topo do Monsanto as antenas da marinha e à direita, na base do Monsanto perto do bairro da Boavista, as da Renascença. As duas antenas da renascença ladeavam um vasto edifício de dois andares no meio das searas. Passei por lá várias vezes com o meu pai quando ia pagar a renda ao senhorio que morava numa quinta de saloios lá ao lado. José Bento, assim se chamava o senhor, era o proprietário do prédio onde eu morava, o JB da rua 3. Ouvi dizer que era proprietário de outros prédios, quer no bairro, quer na Adamaia. Mas, indo à quinta não se dava por isso. Lá dentro, nas divisões de terra batida, a iluminação era de queima, não sei se de petróleo, se de azeite, a bicharada de capoeira andava por ali em convívio pacífico com os donos e as pessoas andavam descalças e vestiam-se rudemente. Um dos filhos, que era azeiteiro, passava com frequência lá na rua, de faixa, colete e barrete pretos, a segurar pela trela o muar que puxava a carroça profusamente pintada de cores vivas. Apregoava os produtos da horta – tomate, alhos, nabos, couves, cenouras, pimentos – e as pessoas aviavam-se de azeite saloio que era transportado numas latas cilíndricas enormes. O homem, ao que constava porque eu nunca entretive conversas ele, era analfabeto e não sabia nada dos prédios do pai. Moravam, então, ali ao lado e, por certo, nunca ouviram rádio. Mais crescidinho, cheguei a ir à Renascença a passear a pé, sozinho ou acompanhado. Era um dos últimos sítios até onde se podia ir. Para além, era terra incognita.
Nasci e estavam reunidas todas as condições para ter uma infância ligada à rádio. Juntamente com a leitura, a rádio contribuiu para dar forma àquilo que fui como criança. E de algum modo a algo que ainda hoje sou.
Continua no próximo postal (as pessoas da rádio, os programas, a música, os noticiários, o teatro radiofónico e a rádio proibida)
Com seis anos fresquinhos, o meu pai inscreveu-me na Escola Normal. O Magistério Primário de Lisboa, assim se chamava na altura, era uma instituição de formação de professores primários que funcionava a par da escola primária aberta às crianças da comunidade. Fora construída no alto de um imenso descampado, situado na antiga Quinta de Marrocos, nas traseiras da Avenida Gomes Pereira, e tinha acesso, quer pela estrada de Benfica, passando ao lado do quartel dos bombeiros, quer, andando pelo lado oposto, pela estação de Benfica, por onde eu vinha e regressava diariamente a casa. A segunda circular, que descaracterizou completa e irremediavelmente o local, só viria a ser construída no início da década seguinte.
Dizem alguns entendidos, e vê-se escrito a torto e a direito, que a saída de casa para a escola é um evento traumático. Baseiam-se estas suposições no facto indesmentível de que a criança é separada das pessoas e dos lugares conhecidos para se defrontar com pessoas e lugares estranhos e de que, facto provavelmente desmentível, passa a ter exigências e normas de conduta quando a vida era, dantes, de regabofe e libertinagem. A reflexão, o conhecimento científico e a experiência de vida conduziram-me a uma desconfiança radical relativa às teorias psicológicas populares e a só dar como assente, e até prova em contrário, a teorias baseadas em pressupostos sólidos e que resistem, de acordo com o método experimental, ao confronto com os factos empíricos. O medo face aos estranhos e o pavor de se perder em lugares desconhecidos são factos bem estabelecidos, mas ocorrem em períodos da vida muito precoces, nos primeiros meses de vida. A partir daí, as crianças alargam o conhecimento do espaço periférico, desenvolvem teorias cognitivas sobre o mundo físico e humano, começam a diferenciar as intenções dos estranhos, tomam gradualmente consciência dos riscos envolvidos e adoptam estratégias de afrontamento do novo e desconhecido, sobretudo as estratégias desenvolvidas em regime de manada. E é em regime de manada que se imagina e testa novas normas de conduta social. As brincadeiras em bando nas ruas do bairro tinham tido esse papel e a nova vida social era relativamente emancipadora às normas castradoras da vida em casa e em família. O certo é que não experimentei com a minha ida para a escola nada de constrangedor e ela foi, até certo ponto, uma libertação.
Além disso, o novo exercia um enorme fascínio, tão excitante como a descoberta de novos mundos, a exploração de continentes, a descoberta de raças e civilizações exóticas com que me fora familiarizando nas minhas leituras infantis e nos livros aos quadradinhos.
Foi uma festa e uma excitação o período que antecedeu o início das aulas. Para além dos brinquedos, e das roupas e do calçado que se me colavam ao corpo e que para mim eram transparentes, alarguei o meu espólio de pertences materiais. Vieram os primeiros lápis, de marca Viarco, que tresandavam de cheirinho bom quando eram aparados, as primeiras borrachas de dupla função, parte para apagar lápis, parte para apagar tinta e rasgar o papel, e o afia-lápis de metal e meia dúzia de lápis de côr de tamanho reduzido. Tudo para guardar numa caixa rasa de madeira com uma tampa de correr, pois o meu grande desgosto e desilusão foi nunca ter tido, até hoje – note-se!, uma caixa de segundo andar como os autocarros verdes da Carris. Mais tarde tive a minha caneta de aparo, que mergulhava nos tinteiros brancos inseridos nos tampos das carteiras para molhar a ponta, e o respectivo mata-borrão para me livrar dos excessos de tinta. A primeira caneta de tinta permanente, uma Parker, deu-ma o meu pai quando fiz o exame da quarta classe. Tive, nessa altura, o meu primeiro caderno de duas linhas para o treino da caligrafia e a sebenta para os números, as contas e os desenhos. O busilis era acartar com a ardósia que fazia peso e usá-la porque embirrei logo com ela na primeira utilização: o risco nunca saía como desejado e fazia um sonho de arranhado que me molestava. Só me voltei a lembrar da ardósia muitos anos mais tarde quando peguei pela primeira vez no meu iPad Retina. Ah! Como tinha evoluído a tecnologia do quadro portátil! Tudo isto ia dentro dentro de uma pasta que palmilhava comigo aqueles quilómetros que distavam da minha casa à escola, tal como a lancheira onde iam os víveres para o mata-bicho.
E os livros? Pois, os livros! Já estava familiarizado com eles, mas o que já ia lendo,os da colecção Formiguinha, eram mais pequeninos e levezinhos. O Livro da Primeira Classe, assim se chamava o meu primeiro livro. Tinha uma capa de amarelo-torrado debruada com quatro fileiras de glifos decorativos castanhos a simular ramos de folhas alternadas. Nos dois terços superiores, a imagem de um casal de pequenotes, provavelmente irmãos, ele, que aparenta ter uns aninhos mais, passa um braço protector sobre o ombro da loirita de laçarote azul e com a outra mão ajuda a soerguer o livro que ela, a Raquel, parece soletrar. Logo numa das primeiras páginas o “a e i o u”, cada letra a vermelho em correspondência com uma imagem, o “a” com as águias do Benfica, o “e” com um “cavalo”, o “i” com uma igreja, o “o” com um ninho com cinco ovos e o “u” com um cacho de uvas. Na altura, não percebi essa do “e” estar relacionado com o cavalo e, apesar da insistência dos adultos a explicar que se tratava de uma égua, e que esta era a mulher do cavalo, eu não ligava muito à questão do género que só me veio a interessar por alturas da quarta classe quando comecei a brincar aos maridos com as colegas. Quando, alguns anos mais tarde, me interessei pela evolução das linguas românicas, percebi que a língua latina dispunha muitas vezes de duas palavras distintas para designar o mesmo objecto, como “caballus” e “equus” para designar o cavalo, “catus” e “felix” para designar o gato. Daí, o terem aparecido termos como “égua” e “felino”. Mas esta explicação, bastante simples e elucidativa, veio demasiado tarde para esclarecer o mistério do “e”. Também comecei a entender que, quando os adultos começavam a engasgar explicações para os mistérios que eu procurava esclarecimento, o assunto metia geralmente sexo.
Durante os três anos que frequentei a Escola Normal as minhas professoras chamavam-se alunas e todos os semestres tinha duas ou três alunas diferentes. O Estado procurava assegurar que vinham de boas famílias, católicas e patrióticas, e que eram donzelas puras e de reputação imaculada. Sendo a sua elevada missão a de educar sãmente os rebentos da mocidade, assim deviam permanecer castas de pensamento, palavras e acções. Não estavam autorizadas a namorar. Quando já professoras tinham que pedir autorização para casar ou para viajar para o estranjeiro. Nesses tempos, eu não sabia disso. Mas achava as alunas muito simpáticas, carinhosas e dedicadas.
Um bom exemplo disso foi quando, certo dia, na violência dos recreios, levei um pontapé nas partes e fiquei a sangrar devido a uma ferida profunda na glande. Chorei, assustado pelo sangue, e fui logo conduzido à aluna de serviço que me conduziu à casa de banho, me lavou e desinfectou, e, para me distrair do susto, pôs-se-me a fazer carícias no órgão que entumesceu, o que provocou uma dôr fininha, estancou a sangria e me deu uma paz profunda. Pediu-me que viesse mostrar no dia a seguir para ver se já estava sarado. Como fiquei logo sarado, não mostrei. Mas nunca mais me esqueci da exaltação daquele momento.
Nos primeiros meses, ia e vinha acompanhado pela minha mãe. Nos meses seguintes, as mães começaram a cooperar para conduzir as ninhadas à escola. Passados tempos, comecei a ir e a vir acompanhado com os meus colegas do bairro. Andávamos com uma bata que só tirávamos quando chegávamos a casa. A minha mãe esforçava-se por trazer as minhas batas de um branco alvíssimo e impecavelmente engomadas e impunha-me o esforço de não as sujar ou enrugar. Eu perguntava-me a mim próprio se não valeriam bem os puxões de orelha que levava todos os dias em troca de poder brincar à vontade e enxovalhar a porcaria da bata. Até porque produzia danos colaterais. Era costume a escola dar pelo Natal brinquedos aos meninos pobres. Eu não recebia nada porque era rico: tinha a bata sempre engomada e andava sempre calçado. Não foi sem razão ou motivo que em adulto odiei sempre as fardas,as gravatas e os fatos caros. A roupa que nos espartilha os corpos também nos espatilha as vidas e cerceia as liberdades.
Chegavam, geralmente, por altura das festas solsticiais: a maior parte vinha pelo Natal; o outro lote, pelo meu aniversário, em finais de Junho.
Dos meus pais recebia coisas que, se bem que desejadas e, às vezes, muito apreciadas, não as considerava brinquedos. Calçado, roupas e adereços eram distintivos que iam assinalando marcos do meu crescimento e que consagravam uma posição cada vez mais elevada e mais reforçada no mundo hierarquizado dos adultos e dos estavam em vias de sê-lo. Ocasionalmente, recebia sapatos para substituir os que já apertavam e magoavam os pés. Com mais frequência, davam-me meias novas cujos elásticos, estando em bom estado, impediam que elas me caissem pés abaixo. Iniciaram-me na camisa à homem, tão apertada no pescoço que sufocava. Com a camisa pude experimentar laços espantosos que me distinguiam dos meus contemporâneos por uma personalidade ímpar. Finalmente, um certo dia, já avançado no curso do meu crescimento, tive o direito às primeiras calças e pude,então, começar a pôr de lado os calções. À mistura com as coisas sérias vinha sempre o brinquedo, um carrinho ou uma camioneta de lata ou de madeira, alvo principal da minha motivação para me levantar cedo no dia de Natal e ir logo de corrida para a chaminé onde na véspera deixara os sapatos.
Eram os meus padrinhos que me davam mais brinquedos e não se limitavam a dar em datas previsíveis. Eram brinquedos muito preciosos, daqueles que nesses tempos não se viam senão, e muito raramente, nas montras das lojas caras e o meu uso deles acabou por ser muito cerceado pelas regras que me impunha a D. Ermelinda, a minha mãe, para evitar que brinquedos tão lindo e tão caros se estragassem. Do pouco que me resta para recordar, foi esse o caso de um magnífico tanque de guerra metálico, de proporções bastante avantajadas para o grosso do material circulante que populava o meu património. Dava-se-lhe corda e ele, girando sobre as suas lagartas, galgava por cima de todos os obstáculos que encontrava no terreno e ia faiscando chispas por uma vigia sob o canhão imponente. Coisas americanas! Estava-se nos primeiros anos do pós-guerra, já não havia as bichas para o carvão de que tanto ouvia falar, e o tanque estava ali para nos defender dos maus que faziam a guerra, que, se pudessem, nos levariam outra vez para os tempos da carestia de vida e da pneumónica. De tanta corda lhe ter dado, um dia ouvi-a a desbobinar freneticamente lá por dentro e percebi que tinha irreparavelmente perdido a tensão qure lhe permitia a marcha autónoma. A partir desse momento, o brinquedo perdeu o seu estatuto especial. Andava, mas só se fosse empurrado; disparava, se fizesse, como para os outros brinquedos banais, o pumpumpum com a boca. Eu próprio me sentia desclassificado, remetido para a banalidade do ser comum e vulgar. Já não dava, como dantes, para ir para as escadas, o mais longe que a minha mãe permitia, para mostrá-lo aos meus amigos. Já não dava para deixar cada um experimentá-lo, revelando a minha benevolência. Deixara de ser dono de um objecto ímpar e descobri, uma vez mais, a precariedade das coisas materiais e das circunstâncias da vida. Afinal, não estávamos assim tão bem defendidos da guerra como toda a gente pensava.
Recebia também brinquedos das “francesas”, de uns vizinhos sem filhos, dos meus tios do Entroncamento e de outros familiares, dos amigos que o meu pai arranjava com facilidade por todos os lados no seu giro por Benfica. Mas, momento importante e solene, com data marcada e espera prolongada e muda, era a festa do natal que os serviços sociais dos C.T.T. faziam todos os anos no Pavilhão dos Desportos para os filhos dos funcionários.
A excitação começava na manhã do dia anunciado.Tornava-se impaciência com as exigências e rigores de vestuário antes de sairmos de casa, alongava-se com a espera da camioneta do Eduardo Jorge, a lentidão com que subia o Monsanto e com que descia a autoestrada em direcção ao Marquês. Aqui chegados, começávamos a ver outras famílias a atravessarem o parque Eduardo VII, a descer a Fontes Pereira de Melo ou a atravessá-la vindos da avenida da Liberdade e a convergirem para o pavilhão. No átrio de entrada do pavilhão havia bancas, creio que por idades mas não estou muito seguro disso,onde o funcionário e a prole eram identificados e onde recebia a prenda, o lanche e o balão. Logo ali à entrada, havia já um arco-iris de balões colados ao tecto. Lá dentro, a ascenção iria ser de minuto a minuto, à medida em que cada um se punha a abrir a sua prenda e a familiarizar-se com o brinquedo. Havia um espectáculo, mas isso era coisa que interessava mais aos adultos que se fartavam de rir com a exibição dos palhaços.
Nem todos os brinquedos eram oferecidos e apareciam com data marcada. Para começar,havia os produtos de marketing, que na altura se chamavam reclames, como o brinquedo de plástico de pequenas dimensões que vinha no interior da caixa da farinha Amparo, cujas papas comíamos matinalmente às pazadas para acelerar a reposição da caixa. Os cromos com as efígies dos jogadores de futebol (o Travassos, o Coluna, o Vicente, o Matateu, o Costa Pereira,o Virgílio, o Águas, o Eusébio e o Peyroteo) vinham a envelopar os rebuçados ou dropes que comprávamos com as nossas economias. Recortávamo-los de modo a caberem no interior das caricas das bebidas e jogávamos com elas num campo de futebol desenhado no chão, uma espécie de matraquilhos em campo accionados à “berlaitada”. Havia os soldadinhos de plástico, versão pobre a emitar os de chumbo, em casernas onde coabitavam soldados romanos, com índios e tropas SS. Havia os bilas, para os quais as nossas mães confeccionavam sacos de pano para evitar que rompêssemos os bolsos dos calções,havia os piões de madeira que, depois de lançados, aparávamos com a mão para picar os dos outros, as “chichas” ou bolas pequenas de borracha para todo o tipo de jogos de bola, a fisga, as pistolas com coldres e mascarilha para jogar aos “cábois”. Outros eram confeccionados por nós, com ou sem a ajuda de adultos: o avião de papel, o arco e as flexas de índio, o punhal e a espada, o escudo, os arcos de jogar ao arco que empurrávamos com uma gancheta e os carrinhos de madeira com rodas de esferas com que adestrávamos as perícias de pequenos fangios nas descidas íngremes das ruas 2 e 4.
O brinquedo era sempre mais interessante quando artesanado por nós. Eu tinha uma predilecção particular por inventar coisas. Transformar um objecto utilitário do quotidiano em brinquedo era um passo maravilhoso de magia. A minha preferida era transformar as molas de madeira de estender a roupa em exércitos que deslocava no extenso corredor de oito metros da minha casa. A D. Ermelinda é que não gostava mesmo nada disso: passar as molas pelo chão que as pessoas pisavam não era o mais adequado para pendurar a roupa acabada de lavar. O pior era que eu pintava cada mola com divisas, galões e insígnias daquilo que eu imaginava serem as patentes e as armas dos exércitos. Aquelas pobre almas arrastavam-se pelo chão no ataque a fortes inexpugnáveis construídos com caixas de sapados com ameias recortadas à tesourada. E eram rejeitados pelos defensores a poder de berlindes, as armas de arremesso de que ambos os contendores dispunham.
Não eram metamorfoses, porque as coisas não mudavam de forma: a cada momento mudavam de significado. Por detrás do significado expresso de cada coisa, havia uma série de significados encobertos predispostos a revelarem-se se assim a gente o quisesse. Quando descobri que as minhas acções alteravam o significado às coisas comecei a construir o meu próprio mundo e nunca mais o larguei. Tornou-se um casulo que não parei de construir e reconstruir. E como vim também a descobrir que não estava sozinho a construir mundos, o universo converteu-se numa cornucópia de mundos.
Comecei a ler com o meu pai quando ele começou a ler-me a Página Infantil do Diário Popular. A fabulosa capacidade que ele tinha de extrair histórias engraçadíssimas daquelas garatujas entusiasmava-me. No dia a seguir, ele ia para o trabalho e eu ficava em casa sentado no corredor a contemplar os desenhos do José de Lemos. Punha o dedo em cima da página do jornal e ia navegando letra a letra, palavra a palavra, enquanto recontava para mim próprio de memória a estória que ouvira ler na véspera.
Decidi, então, que também sabia ler. A partir dali, só tinha que conhecer as letras e aprender a técnica de juntá-las para formar palavras, um pormenor com que fui lidando, pouco a pouco e sem esforço, com a ajuda do meu pai. Aos cinco anos já lia umas coisas, mas aos seis fui para a escola desaprender a ler.
Por esta altura, já não brincava só no quintal e ia todos os dias brincar para a rua com os outros meninos que eram, mais ano, menos ano, da minha idade. Quando éramos ainda muito pequenos, brincar consistia em juntarmo-nos em pequenos bandos e trocar experiências. No fundo, íamos comprovando que a vida lá em casa não era muito diferente da dos outros, e percebendo que os adultos, ou seja os pais, se tinham contagiado todos com as mesmas manias. Outras vezes falávamos dos nossos brinquedos e, quando nos deixavam trazê-los connosco para a rua, fazíamos trocas temporárias.
Quando mais crescidos, alargámos os nossos interesses aos jogos tradicionais que requeriam competências sociais muito complexas, como compreender regras e ser capaz de aceitá-las. Brincava-se à apanhada e às escondidas que não requeriam um número certo de gente, eram jogos mistos e tinham regras simples. Não por tabu, mas por uma inexplicável questão de preferências, havia também jogos para cada sexo: A macaca era o jogo preferido das meninas e o bilas e as caricas eram jogados quase sempre pelos miúdos. Mais para a tardinha do dia, quando já andava a malta toda na escola, jogava-se ao mata, ao ringue, à cabra cega, ao rei manda, à mamã dá licença. O jogo final, o ringue, começava quando as francesas chegavam do liceu. O Sr. Francisco arrumava o carro em cima do passeio um pouco mais à frente da casa para nos dar espaço e elas corriam a casa a pôr as malas e a buscar o ringue de borracha. A rua era um enorme rectângulo ocupado pela malta miúda, cerca de uma vintena, que ria corria, suava, afogueava-se. A coisa acabava sempre da pior maneira. Uma a uma, as mães vinham à janela chamar para jantar. A resposta, invariável, era: “Mãe, já vou. É só mais um bocadinho!”. E invariavelmente, a mãe respondia: “Não te volto a chamar.” O que a ser verdade nos daria uma grande felicidade. Um a um, íamos desertando com a promessa firme de que voltar no dia seguinte.
No rés-do-chão, no lado oposto ao dos meus pais, moravam as francesas. Assim se referiam a esses nossos vizinhos as pessoas do bairro. Mas, na realidade, apenas a mãe, ou a Madame como nós a tratávamos, era francesa, natural da Alsácia. A Gabi e a Lenoca eram bem portuguesas, filhas da Madame e do Sr. Francisco, creio que motorista da embaixada americana.
As francesas teriam provavelmente nascido noutro lado mas vieram para aquela casa muito novinhas. Eram uns anos mais velhas do que eu e decidiram, portanto, adoptar-me. Como iam todas as manhãs dos dias de semana para o liceu Charles Lepierre, eu ficava sozinho no quarto delas a consumir tudo o que me era possível naquela imensa biblioteca infantil. Um a um, li os livros todos da colecção Formiguinha, de pequeno formato, alinhados na estante à cabeceira das camas delas. Depois, comecei a ler livros maiores de outras colecções da Majora, onde o bom alinhavo da narrativa se casava sempre bem com o grafismo espantoso das suas ilustrações. Mais tarde, já andava adiantado na escola, entrei pela colecção Salgari a dentro devorando os sandokans e os tigres da Malásia. De outros livros, lembro-me dos do Walter Scott e dos Cinco e de como olhava de soslaio para os romances policiais do Sr. Francisco, arrumadinhos numa estante da sala ao lado do enorme sofá onde eu me afundava a ler as minhas carochinhas.
Lia avidamente todos os dias, todas as horas, todos os minutos. A meio da tarde, a minha mãe chamava-me para lanchar. Como excelente cozinheira que era, preparava saborosas iguarias para me atrair a casa. As miúdas galgavam as escadas acima, lambareiras e, como térmitas esfomeadas, limpavam a mesa da merenda sem deixar migalha. Cada vez, a minha mãe fazia mais, diversificava e sofisticava. Eu é que nada, deixava-me ficar, o meu propósito era aproveitar o tempo para ler, ali mesmo na cozinha onde a Madame, com o seu ar austero e o seu português germanizado, passava a ferro enquanto eu comia o lanche que me preparara, frugal mas suficiente e com paladares que eu nunca tinha experimentado. Ao jantar o meu pai ouvia as queixas e as recriminações da minha mãe e ficava a saber o ingrato que eu era. E desfazia na francesa, que não sabia cozinhar, ela e ele tão magricelas, com as miúdas a passarem fome de rabo, que aquilo até era um gosto vê-las comer.
O ponto alto do meu programa de leituras era ao sábado quando vinha o Sr. Américo, o jornaleiro, trazer o Século ao Sr. Francisco e deixava para as meninas a edição semanal do Cavaleiro Andante. O cavaleiro andante era uma revista de bonecos, ou de banda desenhada como hoje se chama. Como elas eram umas miúdas arrapazadas ou cavalonas, segundo os ditos da altura, queriam era andar na rua e quem estreava o Cavaleiro Andante era eu. Mais tarde apareceram outras revistas, como o Falcão e o Condor Popular com estórias completas, mas o Cavaleiro andante apenas trazia uma ou duas páginas de cada história, algumas mesmo intrigantes como o Mistério da Grande Pirâmide ou a Marca Amarela com o Blake e o Mortimer, outras deslumbrantes como o Tim-tim na Lua, o Lotus Azul ou o Tim-tim na América do Norte, discronias maravilhosas como Um Americano na Corte do Rei Artur, o devendar dos mistérios de África, o imaginário bíblico em o David Pastor da Judeia, índios e cowboys em Regresso de Sitting Bull, e uma galeria de heróis como o Tarzan, o Zorro, o Mascarilha, o Robin dos Bosques, o Marco Polo, o Davy Crockett, o Lucky Luke, o Billy the Kid, o Michel Vaillant, o Asterix e mais. Uma página ou duas era pouco para satisfazer um espírito ávido, despertava uma estranha ansiedade que me acompanhava durante mais uma semana de espera.
Quando as francesas chegavam da escola punham-se a ensinar-me francês. Aprendi, então, a recitar de cor:
Un deux trois Je m’en vais au bois Quatre cinq six Cueillir des cerises Sept huit neuf Dans mon panier neuf Dix onze douze Elles seront toutes rouges
Chique, mesmo chique! Mas não tocava piano.
Na escola não lia coisa de jeito. Ao fim de um ano soletrava coisas como “O PA-PÁ PA-POU O PI-PI DA TI-TI”, mas aquilo não me dizia nada e decidi não colaborar. Na terceira classe já devorava tudo o que fosse botânica ou zoologia. Os estudos comparativos e as sistemáticas interessavam-me. Foi um prelúdio do meu interesse pelo evolucionismo. A história também, de certo modo: saber os reis de todas as dinastias e os respectivos cognomes era obra, mas não passava de um exercício de equilibrismo intelectual: aqueles reis não chegavam aos calcanhares dos reis, rainhas, princesas e príncipes das minhas primeiras estórias. A realidade só ultrapassou a imaginação, e comoveu-me deveras, com a leitura nas páginas dos jornais da morte da Princesa Diana.
Como já referi, mas não com o pormenor suficiente, o bairro abrangia o troço da estrada de Alfragide, duas ruas perpendiculares, a 1 (actualmente, Padre Cruz) e a 2 (Padre Américo), que terminavam abruptamente num morro de onde se vislumbrava a Damaia, duas ruas paralelas, a 3 (Prof. Dr. Egas Moniz) e a 4 (António Ferro), que, vindas da estrada de circunvalação no sentido da Adamaia, cruzavam as primeiras e perdiam-se nas searas entre o bairro e o pequeno casario de Alfragide, e uma pequena travessa (rua Gonçalves Zarco) que, saindo da estrada de Alfragide atalhava para a estrada de circunvalação no sentido do bairro da Boa Vista.
A construção, antes do aparecimento dos prédios “novos” nos finais dos anos 50, resumia-se a dois tipos: o mais antigo, encontrado na estrada de Alfragide e na travessa, era formado pelos chalés unifamiliares, de piso térreo e completamente rodeados por um quintal; o mais recente e o mais comum, o das quatro ruas, por prédios de quatro habitações cada, com o rés-do-chão envolvido pelo quintal.
Acedia-se à habitação pela porta da rua e pelas escadas. A porta interior dava para um corredor com cerca de oito metros que ligava a sala de jantar, que dava para a rua, com a cozinha, a dar para as traseiras. De um dos lados do corredor, um quarto interior e a dispensa, e do outro lado dois quartos e a casa de banho voltados para o quintal. Apensos à cozinha, um cubículo de arrumos com uma pia e uma pequena marquise. Ignoro se as casas eram todas assim, mas esta era a estrutura da minha casa no prédio JB da rua 3.
À frente de cada prédio, os quintais eram ajardinados ao gosto e de acordo com a imaginação e a posse dos seus possuidores. Lembro-me fugazmente das roseiras, de rosas vermelhas ou brancas, que trepavam as paredes altas que separavam os quintais, e dos jarros e das margaridas nos canteiros de tijolo, cimentados e pintados com cores vivas. Subindo por uma pequena escada cimentada ia-se dar, de cada lado do prédio, a um corredor de calçada à portuguesa colocado entre a parede do prédio e uma faixa de terreno mais larga onde havia árvores plantadas, geralmente nespereiras ou limoeiros. Nas traseiras, o passeio de calçada alargava-se para formar um pequeno pátio e o terreno alongava-se para acolher hortas com couves, alfaces e feijão de trepar, capoeiras com galináceos e coelhos, e árvores de fruto como a macieira, a pereira e o pessegueiro.
A população era sobretudo constituída por casais novos, com um ou dois filhos e um ou outro parente. Os habitantes mais instruídos tinham o quinto ano dos liceus ou um curso técnico. Ter o sétimo ano, o que era muito raro, fazia da pessoa um doutor. A larga maioria da população tinha a 4ª classe, geralmente os homens, ou era analfabeta. Predominavam os pequenos e médios funcionários dos serviços (forças armadas, polícia, bombeiros, correios, carris, CP) ou operários qualificados e semiqualificados, sendo a Sorefame na Damaia o principal empregador. As mulheres ficavam em casa como domésticas, a tratar da casa e dos filhos, e algumas eram operárias a tempo parcial ou prestavam em casa serviços de costura, de modista, de enfermagem, cabeleireiro ou outros pequenos serviços. Entre os homens, contavam-se alguns alfaiates e sapateiros.
O comércio era o suficiente para os consumos diários do bairro: Recordo-me de várias mercearias, peixarias e tabernas, duas padarias, um talho de carne de cavalo, uma carvoaria, uma capelista, uma drogaria e uma barbearia. Ninguém se servia do que precisava: esperavam todos, ordeira e pacientemente, do lado de cá do balcão, enquanto o merceeiro, o caixeiro ou o marçano, do lado de lá, aviava os clientes um a um. Ninguém se maçava com esta situação: era o momento do dia de alta convivialidade. As notícias do mundo era ali que circulavam. Era ali que se fazia os comentários sobre o quotidiano do bairro, dos nascimentos, dos baptizados, dos casamentos, das zangas entre marido e mulher (com obrigatória expressão pública à janela seguida de excursão dos vizinhos à casa da vítima), das doenças e achaques, dos funerais e dos enterros. Também ali se fazia o comentário político, o único que se podia ou sabia fazer: “o que o Salazar devia fazer era…”, por exemplo, aumentar os salários dos maridos, diminuir o custo da vida. Tudo se resumia a uma coisa bem simples, à ignorância do Salazar. O homem até tinha boa vontade mas estava rodeado de uma data de salafrários que lhe escondiam os problemas reais dos portugueses. O da loja também metia a sua colherada tentando impressionar a clientela com os seus conhecimentos. No fim, a gente ia embora e não pagava. Ia tudo para o livro dos fiados.
No tempo em que nasci, os partos eram feitos em casa. Quando chegou a hora, o meu pai pediu a assistência dos serviços clínicos dos CTT e mandaram-lhe uma enfermeira-parteira a casa. Apesar de ser um dia de verão intenso, enchi-me de coragem e decidi defrontar o mundo à hora mais quente do dia. A enfermeira tardava e eu não estava para grandes esperas, o que é estranho em mim que me considero, de um modo geral, paciente. Mas, caramba, só se nasce uma vez! E lá vim, assistido pelo meu pai que improvisava. Vim nédio e lustroso, dizem que pesava mais de 5 quilos, um “borrego” como se expressavam os meus velhos com orgulho. Correu tão bem o parto que descreveram a minha vinda ao mundo como tendo sido feita “de patins”. Todavia, não gritei, permaneci mudo para espanto de toda a gente. Assim fiquei e comecei a ficar roxo até que alguém se lembrou de me meter debaixo de uma torneira com água fria a correr. Não devo ter gostado nada da partida porque comecei a berrar que nem um vitelo.
Uma hora depois, mais coisa menos coisa, chegou a enfermeira que tinha tido uma “panne” na autoestrada na subida do parque florestal do Monsanto. Não perguntem qual era a autoestrada porque naquele tempo só havia uma: Ligava a ponte Duarte Pacheco ao estádio do Jamor, ambos inaugurados, autoestrada e estádio, havia quatro anos.
Não me lembro nada do que se passou nesses primeiros meses. Quando a minha mãe já estava em condições de voltar ao trabalho – era cozinheira em casa de uns senhores dinamarqueses que moravam no Poço do Chão – levava-me com ela. Muitas vezes ficava lá, primeiro com a minha mãe, mais tarde sem ela.
Sem me dar conta disso, parecia despertar um agrado geral nas pessoas que gravitavam à minha volta e que me solicitavam. Nunca a minha cotação esteve tão em alta. A certa altura, uma prima do padrinho Harald, uma dinamarquesa solteirona e entradota que estava em Lisboa de visita aos familiares, acho que podre de rica, quis levar-me com ela para København, que me ia fazer muito feliz e que lhes dava por mim o que eles pedissem. Os parvos dos meus pais não aceitaram. Manias daqueles tempos! Hoje as coisas estão mais liberalizadas, pelo menos no que respeita aos jogadores de futebol.
A crise passou. Por um lado, nunca fui muito de cismar nas coisas ... o que não fazia grande diferença porque também nunca era tido nem achado nas decisões dos adultos; por outro lado, as pessoas crescidas tinham mais com que se preocupar e amiúde mudavam de assunto. Isso ainda hoje me irrita, nas pessoas e nos noticiários.
Presenciava todas as conversas dos adultos, discretamente mas com muita atenção. Descobri, primeiro, que usavam os sons da boca para conversar. Faziam-no durante muito tempo, cada um de sua vez. Eu fazia como eles e verificava, muito agradado, que me davam atenção fazendo também eles muitos barulhos com a boca. Depois descobri as palavras, aprendi algumas e guardei-as ciosamente para mim. Os meus pais, alarmados, porque aos dois anos e meio ainda não falava, levaram-me a um médico que logo ali os tranquilizou garantindo-lhes que eu falar, falava, mas que era para dentro. Não sei como o médico o descobriu, mas cá para mim aquilo foi um palpite. Usei isso mais tarde como psicólogo de crianças e comprovei que quanto mais disparatado o palpite mais chances há de acertar. Eu fazia as minhas descobertas e comprovava-as cientificamente. Por exemplo, que os crescidos eram parvos: sempre que uma pessoa pequena improvisa eles respondem-nos com palermices e momices, tipo “glu-glu-glu” e “tá-tá-tá”. Que ideia fazem de nós? Melhor seria, concluí, continuar as minhas pesquisas independentemente e não confiar muito na arraia graúda.
Descobri que certas palavras só podiam ser usadas juntas e não podiam ser misturadas com outras palavras. Por outro lado, havia grupos distintos de palavras para grupos distintos de pessoas e para ocasiões distintas. O grupo com maior frequência de utilização era usado pelo pessoal e pelos senhores quando falavam com o pessoal. Entre os membros da família usavam-se palavras que só eles entendiam. Quando havia jantares com as pessoas do “escritório” e outras pessoas que me eram estranhas, e se falava de negócios, usavam um terceiro grupo de palavras desengonçadas, as da língua inglesa que ainda hoje me entedia de morte. Os meninos falavam entre si numa língua que, a acreditar na Leninha, era muito “chique”. Gostei muito dessa palavra e ainda hoje adoro o Francês. Há dias, estava a ver um filme com a Graça e ela desabafou: “mas que língua tão estranha esta!”. É dinamarquês, disse sem pensar. E era. Achei-a uma língua muito doce.
Com três e quatro anos já falava alguma coisa mas depressa voltei a falar muito pouco. A minha mãe deixou o emprego para se dedicar a mim e à casa e voltámos decididamente para o Bairro Tacha. Então, o meu pai começou a ensinar-me a ler.
Do lado de cá da linha dos comboios, mas ainda pertencendo a Benfica, havia um pequeno lugarejo conhecido por Buraca. Quem descesse do comboio no apeadeiro, ou com maior frequência na estação, teria que atravessar a linha, palmilhar a estrada da Buraca ladeada por quintas e casas apalaçadas e passar por baixo de um dos arcos do aqueduto das Águas Livres. A estrada prosseguia o seu imóvel caminhar subindo íngreme até ao Alto da Boavista, ao pé do estádio de Pina Manique, o campo do Casa Pia.
A meio da estrada da Buraca, no seu ponto mais baixo, encontra-se o Chafariz da Buraca, uma esplêndida obra de arte apensa ao aqueduto e, do lado oposto, uma árvore secular onde, diz-se, um dia teria parado ali a rainha D. Amélia para descansar à sua sombra. A árvore foi preservada em memória da rainha do coração de muitos portugueses, mas receio que a iconoclastia reinante e a cupidez dos mercados a tenham feito ir à vida.
Quem passasse o mesmo arco e subisse no outro sentido pela rua da Buraca repararia no conjunto de pequenas vivendas que se emparavam umas às outras, dispostas ao longo do lado direito da rua. Do outro lado, havia hortas, nada digno de nota por tão comuns que eram naquela altura. Aquele casario, que a certo ponto cessava para dar origem a um descampado com algumas oliveiras aonde acampavam os ciganos, era a Buraca.
A rua da Buraca terminava no cruzamento do Jordão, devido ao nome de um estabelecimento aí localizado, e daí irradiavam três estradas. A da esquerda conduzia ao campo do Casa Pia e ao bairro da Boavista; a da direita atravessava a linha e conduzia à praceta da Damaia, à estrada militar e, a partir desta, às Portas de Benfica. Eram estas duas estradas que separavam as freguesias de Benfica e da Amadora, esta última pertencente ao concelho de Oeiras. No meio delas, bissectando-as, recortava-se a estrada de Alfragide que, atravessando a estrada de Sintra, projectava-se com outros nomes pelas searas do Canas, passava por Carnaxide, ia fazer promessas à Senhora da Rocha, circulava por Linda-a-Pastora e ia desaguar na Cruz-Quebrada.
O segundo arco do aqueduto dava acesso a uma estrada sinuosa e descampada, a travessa Sargento Abílio, que conduzia ao Calhariz de Benfica, outro pequeno lugarejo encimado sobre a linha do lado oposto à estação e a paredes meias com o Monsanto.
À volta da estrada de Alfragide, logo ali ao Jordão, começou-se a construir, na década de 40, um pequeno núcleo habitacional constituído por quatro ruas em forma de cerquilha a que veio a dar-se o nome de Bairro Tacha por ser este o nome do seu construtor. Os meus pais arranjaram ali casa, julgo que em 46, quando se casaram. E ali tiveram os seus filhos e fizeram a sua vida.
Era o Bairro Tacha à Buraca. Nos anos 60 o nome começou a entrar em desuso e o bairro começou a chamar-se, simplesmente, Buraca. Mas já não era o mesmo: apareceram outras gentes e outros costumes, as cearas, as hortas, as quintas e os retiros foram desaparecendo e deixou de haver uma separação nítida entre a Buraca, Alfragide e a Damaia que passaram a ser nome para as três freguesias integradas no concelho da Amadora recentemente criado. Hoje a Buraca é um nó viário, um Amazonas de asfalto que rasga e seca a terra em todas as direcções.
Tive uma infância tranquila. Passei-a grande parte dos primeiros anos no Poço do Chão.
A vivenda dos meus padrinhos tinha a entrada e os muros que a separavam da estrada do Poço do Chão voltados para o que é hoje o Colombo. A sul, situava-se a garagem, o jardim e a horta com arvores de fruta. Uma cerca de alvenaria coroada de arame farpado fechava a propriedade a poente e tapava os labirínticos corredores de trepadeiras em jeito de alpendre que continuavam por fora a parte posterior da casa, uma divisão envidraçada disposta a todo o comprido da construção que albergava entre outras actividades domésticas a lavandaria e a engomadoria. O jardim, cuidadosamente tratado, prolongava-se por um enorme relvado que abrigava o estendal da roupa e a casota do Zip, um cão com uma cabeça preta e branca tão grande que às vezes me tapava o sol quando prescutava com os seus olhos imensos os sinais de bem estar do meu rosto. O Zip cuidava de mim com um apurado e militar sentido de missão. A começo, quando me deixavam no carrinho protegido do sol pela sombra de uma fralda. Mais tarde, quando me deixavam a gatinhar na manta que se usariam ainda, descobri-o mais tarde, nos picnics na Lagoa Azul ou noutros pontos igualmente feéricos da Serra de Sintra. Nessa altura, o Zip partilhava comigo os seus guisos e fingia que caçava coelhos para me divertir.
Deste período da minha vida, naturalmente, pouco me recordo. Estava mais interessado em perceber a lógica dos eventos sociais do que em rabiscar a estrutura do mundo físico que se organizava à minha volta. A calmaria dos dias, desbaratados a dormir, era interrompida quando os meus padrinhos Alvaro, Elen e Eric chegavam do liceu e brincavam comigo. Mais tarde, chegava, vindo do escritório num carro preto, o padrinho Harald, o pai. Chegava todos os dias à mesma hora, inspeccionava meticulosamente cada uma das rosas do jardim e dava duas bolachas ao Zip que, meia hora antes, já se havia pendurado no muro da estrada a farejar a sua chegada. Quando era mais crescido, também eu me debruçava com o Zip sobre aquela estrada em que raramente passava uma carroça. E confidenciava-lhe as estórias que, momentos antes, a Leninha me tinha contado. Ele ria-se muito com aquela língua comprida toda dependurada da boça e arfava, a intervalos, como o motor do carro do padrinho. De vez em quando, levava uma valente lambidela, limpava-me às mangas do bibe, e lá nos púnhamos de novo à coca do focinho do grande carro negro a virar a curva da estrada.
Nasci não muito longe de Lisboa e ia a Lisboa a pé como os da velha Telheiras iam ao Campo Grande. As fronteiras não nos impressionavam muito, tirando as Portas de Benfica com as suas torres redondas orladas de ameias, e as distâncias mediam-se pelas pessoas que se encontravam. Entre a minha casa e Benfica, havia uma casa rústica de um senhor qure tinha umas vacas e era protestante. Ia lá muitas vezes buscar o leite e ele sentava-me num banco de ordenhar e lia-me a Bíblia. Calhando, atravessava a mata e, descendo-a, ia dar à avenida Grão Vasco. Apesar da curta distância, a fileira de casas de ambos os lados da procissão de amoreiras, que ia desde o externato à igreja, parecia-me interminável, o que a fraqueza das frágeis pernas corroborava. A outra volta era serpentear pela velha estrada das Garridas, que começava no velho apeadeiro de madeira escura da Buraca e ia dar ao chafariz da estrada de Benfica ao lado do que veio a ser a Caixa Geral de Depósitos, onde havia o Patronato contíguo ao campo de hóquei. Para ir à escola do Magistério Primário, onde hoje é a Escola Superior de Educação, ou ao cinema do clube na avenida Gomes Pereira, onde hoje é a junta da freguesia, começava-se por um carreiro que bordejava a linha dos combóios até à estação de Benfica.
Para além da estrada e da igreja, morava numa ponta da rua Cláudio Nunes, perto do cemitério, a minha tia Maria do cão preto, uma viúva tão vasta de corpo como de afecto, com três filhos: o mais velho que cedo foi para a Pérsia, o do meio que me levou ao cinema no dia em que fiz 5 anos, e uma prima da minha idade. Na direcção de Carnide, na estrada do Poço do Chão, moravam os meus padrinhos, dinamarqueses, local onde passei a maior parte do tempo dos meus primeiros cinco anos de vida. Andando um bocado a pé por aquelas azinhagas, ia-se à feira da Luz, onde a madrinha Leninha me comprava pífaros de barro.
Para fora de Lisboa, ia às vezes a casa de uns tios que viviam ali para os lados da Venda Nova.
Mas o lugar de recreio, o mais vasto lugar de recreio, era o parque florestal do Monsanto para onde íamos ao domingo fazer picnics e sestas à sombra dos pinheiros ou ver os patos no lago no miradouro de onte eu espreitava o mundo em todas as direcções.
Espero que hoje seja o fim de qualquer coisa. E só poderá ser o fim se for o começo de qualquer coisa.
Estou em Lisboa, vá-se lá saber, há ... Umas duas semanas? Para aí, mais coisa menos coisa. Começou uns dias antes da ida da Graça para Quito. É normal estar com ela uns dias antes da partida. É certo que é uma separação de apenas uma semana, não maior da que nos afastam os dias normais de trabalho, os ditos úteis. Mas os dias de fim-de-semana, que sinalizam habitualmente os nossos encontros e o nosso viver em comum, tiveram que ser antecipados e postergados, visto terem-se tratado de dias de partida e de chegada, respectivamente. A primeira antecipação do fim-de-semana e de preparação da partida é um exercício de imaginação que tem por resultado um notório efeito prático: fazer caber numa única mala a tralha inimaginável que uma mulher não dispensa em viagem. Fui pô-las ao aeroporto, a mulher e a mala. E instalei-me na minha solidão, agora em isolamento.
Há quem confunda os dois conceitos. A confusão não é conceptual, os termos até poderiam aparecer como sinónimos num dicionário. É de natureza experiencial: quem nunca viveu um e outro nunca lhes reconhecerá a diferença. Eu adoro a solidão e temo o isolamento.
No Tremontelo, a casa, o jardim, o pomar, o bosque de sobreiros e o mini-pinhal são sítios familiares, lugares comuns, onde exercito uma actividade que produz o meu ser e o meu estar. A casa em Lisboa tende a ser um sítio funcional, desabitada durante o dia e a maior parte dos fins de semana, é um lugar onde se dorme. Daí que ficar em Lisboa sem a Graça, acrescenta isolamento à solidão.
Mas fui ficando. Entre a partida e a chegada há que fazer aqueles consertos, manutenções e remodelações que se anda sempre a adiar. Que se podem fazer sem a presença de uma mulher: deixar um fio de cobre descarnado e dependurado do tecto e ir num pulo ao AKI comprar uma peça ou um acessório indispensável, trabalhar a fio sem ter que interromper porque o almoço está feito e a arrefecer, ter a casa toda de pantanas durante uns dias, tolerar a acumulação dos plásticos e cartões com que o IKEA embala os seus artigos, e acumular pó, caliça e serradura a um canto com a consciência tranquila de um psicopata imune a qualquer tipo de alergias. Os dias estiveram gelados, mais precisamente as noites, e permanecer em Lisboa, que beneficia de um clima mais moderado e de aquecimento doméstico mais eficaz e barato, é a opção racional.
A Graça voltou e não desgrudei. Fui ficando, cada vez menos por decisão e mais por inércia. Hoje espero pôr fim a isso, recomeçando a vida no Tremontelo. Life as usual.
Entretanto, fui escrevendo umas coisas em Lisboa. São escritos à Lisboa. Não que estejam escritas no “papel”, mas que estão alinhavadas noutra “ardósia” à espera de saírem a público. São, sobretudo, viagens no tempo. Idas ao passado e retornos ao presente, onde se descobre a identidade radical de todas as épocas e as suas profundas diferenças.
É esse pôr no papel a incumbência para as próximas postagens no Tremontelo